A TRAGÉDIA DO “PENSAMENTO ÚNICO”

Nos conturbados tempos que correm, em que vemos como o capitalismo “sofre” ao tentar resolver os ciclópicos dilemas e mais não consegue que agravá-los, somando crise à crise, voltamos a assistir ao recrudescimento das tentativas para impor o “pensamento único”, que tão nefastos resultados têm provocado à humanidade. Lembramos, a febre unanimista que levou às recentes guerras, cujas consequências estão à vista de todos. Também na história recente da democracia portuguesa, sempre que as forças políticas ou coligações de partidos conseguem maiorias absolutas, de imediato surgem tentativas de endeusamento ou de mitificação, tanto do chefe como do discurso oficial.

A acção governativa passa a ser uma espécie de “bíblia” de verdades absolutas, que a todos compete aceitar e respeitar. É aquilo a que estudiosos e pensadores passaram a classificar como o “pensamento único”.

É uma prática que chegou a todo lado. Sim, também ao Poder Local, em que a tentação de impor o “pensamento único” da maioria ou do chefe, é uma realidade em muitos municípios, com graves prejuízos para o funcionamento democrático dos órgãos, da acção dos eleitos e do processo participativo dos cidadãos. A confirmá-lo, estão os muitos casos de abuso de poder e até de corrupção, alguns, já sancionados pela Justiça.

Acontece, caro leitor, que chegado a esta parte, assaltou-me a dúvida de que já tinha dito algo parecido. Interrompi a escrita, fui aos arquivos e vi que tinha razão. De facto, em 20/06/06 escrevi uma peça com o título “Os obcecados do pensamento único”, a que não resisto citar as seguintes passagens: - “Com os ideais completamente engolidos por uma globalização geradora de um capitalismo selvagem, devorador, insensível e destruidor da solidariedade entre os povos, há os que se abrigam debaixo do acto elogiador, gerador de interesses individuais e cilindrando tudo à sua volta”; -“Encarcerados na sua cegueira, esquecem o que no passado defenderam e dedicam-se com afinco a fabricar mitos, transformando-se, eles próprios, prisioneiros de agendas do poder e em meros espectadores dos desertos que vão criando à sua volta”.

Acontecimentos recentes, nacionais e locais, voltaram a trazer à tona, defensores e alguns novos convertidos ao “pensamento único”. Quando as coisas se complicam, toca a desancar com virulência nos que ousam defenderem ideias diferentes do discurso oficial, mesmo que as apresentem com correcção e legitimidade, nos órgãos próprios, ou através de outras formas legais e igualmente legitimas em democracia.

Ai dos eleitos que ousem ser porta-vozes das legítimas aspirações ou reclamações dos cidadãos que se lhes dirigem. Cai-lhes o “Carmo e a Trindade”, em cima… Vale tudo.

Até dá, para alguns eleitos pertencentes à maioria absoluta e defensores do “pensamento único”, prescindirem do seu legítimo uso da palavra no órgão (eles são muitos), para depois, usando o órgão de imprensa que dirigem, completarem o “serviço”.

Obviamente, caro leitor, embora por meios desiguais, que deviam ser mais recatados e defendidos, ou então ampliados a outras correntes de opinião, saúdo o facto que tem uma enorme vantagem, sabemos o que defendem e com quem estão. 

Nas minhas deambulações diárias pela leitura, deu-me para consultar a Constituição da República e verifiquei que a Mãe de Todas as Leis, através dos artigos 37 e 48, que abaixo cito, está contra o chamado “pensamento único”. Com toda a lógica.  

Art.37:1-Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2- O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.     

Art.48:1-Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos. 2- Todos os cidadãos têm direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos.

Vivemos momentos cruciais. O quadro é explosivo. O neoliberalismo acentua o autoritarismo, reduz sistematicamente o leque das instituições democráticas. Permite ao patronato substituir-se ao Estado para esmagar a força dos trabalhadores. Faz a guerra quando se sente acossado e usa a soberba e o desprezo para os mais fracos, como é o caso da Irlanda. A desumanização impera. A fome é uma ameaça.

A nós cidadãos deste interior, cada vez mais, interior, cabe-nos representar o nosso papel e exercer o nosso direito à cidadania plena e denunciar todas as tentativas que pretendem impedir o diálogo democrático, como também, o livre acesso aos meios que facultam a circulação das diversas opiniões. 

Carlos Vale - Membro da DORCB do PCP