Na passada sexta-feira dia 11 de Março o secretário geral do PCP, Jerónimo de Sousa, esteve na Covilhã para a apresentação do livro «As pinturas do Salão dos Continentes na Casa das Morgadas e a arte na Covilhã no início do Século XVIII».
INTERVENÇÃO DE JERÓNIMO DE SOUSA, SECRETÁRIO-GERAL, COVILHÃ
É com grande satisfação que, em nome do Partido Comunista Português, participamos na apresentação deste importante estudo sobre as Pinturas do Salão dos Continentes e a arte na Covilhã no período da sua concepção e execução, tal como foi com muito prazer que pessoalmente respondi ao convite dos autores e do Município para o prefaciar. Um convite que muito nos honrou.
Este é, no seguimento do processo de recuperação da Casa das Morgadas, Centro de Trabalho do PCP na Covilhã desde 1975, e um dos mais notáveis edifícios civis covilhanenses do Século XVI, mais um passo dado na valorização do património cultural que representa não só o conjunto do seu edificado - hoje classificado de interesse público -, mas particularmente esse pequeno e raro tesouro pictórico que alberga no seu interior, rico de simbolismo e significado para a identidade desta cidade e desta Região e que são o conjunto de painéis de pinturas do Salão dos Continentes.
Temos agora com este estudo documental e iconográfico dos historiadores de arte Vitor Serrão, Maria do Carmo Mendes e Ricardo Silva, que particularmente saudamos, e que vem fundamentar e dar a conhecer de forma mais ampla e aprofundada o inegável valor deste património, mais razões de congratulação e satisfação pelo esforço conjunto realizado para promover a sua preservação e restauro. Desde logo, o esforço realizado pelo colectivo dos militantes comunistas deste concelho e desta Região que tudo fizeram para o defender e ver recuperado e que fizeram do dia 30 de Abril de 2002 – dia da abertura à população dos painéis restaurados - um grande dia de festa, mostrando assim aquilo que o PCP defende: - que a preservação do património cultural é um imperativo nacional e a sua recuperação deve ser usufruída por todos e não apenas por elites. Mas, igualmente, o impulsionamento dado pela Região de Turismo da Serra da Estrela para que a obra fosse possível, o importante apoio do IPPAR ao dedicado trabalho de restauro das pinturas, bem como o empenhamento da Autarquia.
Sabemos, pelo que nos tem sido dado a conhecer pelos especialistas da história da arte, nos quais se incluem os autores do presente estudo, que são raros os painéis de pinturas deste período de finais do Século XVII, início do Século XVIII com uma visão global e laica do mundo.
Este estudo mostra-nos agora em que contexto social e artístico os painéis da Sala dos Continentes foram produzidos aqui na Covilhã, acompanhado de propostas de leitura do seu programa artístico, incluindo o ideológico.
Com este estudo e as suas propostas não só aprendemos a valorizar a obra de pintura em si, com o seu exotismo e liberdade iconográfica, produzida de forma muito expressiva por quem nunca viajou pelo mundo, mas a olhar com outros olhos e compreender a visão do mundo dos seus proprietários ou, como o evidenciam os autores do presente estudo, “o descobrimento do mundo e do homem” que se revela com a representação de uma alegoria dos quatro continentes, nos tectos do Salão Nobre da Casa das Morgadas.
Uma visão própria de uma determinada classe que se afirmava contraditoriamente numa sociedade que estava já marcada pelo rigor repressivo e pelo ambiente suscitados pela Contra-Reforma, as perseguições da Inquisição.
Uma nova visão do mundo que os descobrimentos permitiram e que tinham contribuído para a afirmação de uma nova mentalidade dos portugueses.
São as imagens que os ventos do século das Navegações ainda transportam e a tentativa da representação do novo que nos encantam, esse mostrar de mundos novos e naturezas diversas, de novos povos, hábitos, naturalmente marcado por uma visão etnocêntrica e imperial, própria do contexto colonialista da época.
Dessas navegações que forçaram os portugueses “ao exame directo dos fenómenos da natureza”, a conhecer novos mares e novas terras, também à observação de novos céus, novos climas e de novas realidades. Num tempo em que, como afirmava Garcia da Orta, “sabe-se mais num dia agora pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”.
Desses descobrimentos que levam ao desenvolvimento de uma cultura científica e de avanços importantes nas áreas como a geografia, a cartografia, da cosmografia e astronomia e que a Covilhã se pode orgulhar de ter dado um valioso contributo, através de importantes homens que aqui nasceram e viveram.
Uma representação do mundo e do homem e uma mundividência de uma burguesia comercial e industriosa que se tinha afirmado e de uma comunidade, que não eram alheios ao surto de desenvolvimento manufactureiro de lanifícios que a Covilhã também conheceu nesse período, que fez desta terra um dos primeiros e mais significativo pólos produtivos do País e que, paulatinamente, haveria também de projectar um esclarecido e combativo destacamento do movimento operário português – a sua classe operária têxtil e de lanifícios -, ela também uma marca identitária deste laborioso concelho.
Um tempo interessante este que viu nascer os painéis do Salão dos Continentes aqui na Covilhã. O tempo dessa primeira e promissora iniciativa de fomento industrial no último quartel do século XVII que nasceu sob a influência do novo pensamento económico mercantilista que então se tentava afirmar e da imperiosa necessidade de dar resposta a uma profunda crise que atingia o País. Marcante e inovadora iniciativa que encontrou na comunidade judaica e de cristãos-novos destas terras, pela sua experiência e saber, o terreno fértil para a concretização de uma activa e informada política governamental de intensificação de investimentos manufactureiros, que infelizmente não tardaria a ser interrompido e até invertido por esse desastroso Tratado de Methuen de 1703, promovido e concretizado entretanto, por um poder dominante deslumbrado com o ouro que chegava do Brasil, mas igualmente imposto pelos interesses de uma aristocracia cortesã e que haveria de condenar Portugal à estagnação da indústria a favor de Inglaterra.
Um Tratado que nos lembra outros, destes tempos que vivemos com consequências também elas desastrosas e que têm condenado os nossos sectores produtivos, nomeadamente a indústria, ao declínio e o País ao retrocesso económico, à estagnação e perda de soberania.
Bem precisávamos de retomar hoje essa experiência e inspirarmo-nos no seu exemplo para promover e concretizar uma política de reindustrialização do País para superar uma crise económica, monetária e financeira, com impactos sociais devastadores que há muito permanece e na resposta à qual, o PCP, se tem empenhado em responder com propostas e sob a consigna “Portugal a produzir”, a partir da potenciação dos nossos próprios recursos e da valorização dos nossos conhecimentos e experiência que temos, mas que tal como no passado vemos partir a nossa gente que tanta falta faz à promoção do nosso próprio desenvolvimento, não já para as Holandas de então, fugindo ao despotismo de todos matizes, mas em direcção a todos os continentes à procura do que não encontram no nosso País – um trabalho estável e com direitos e condições para uma vida digna.
Neste acto eminentemente cultural, permitam-me duas ou três considerações sobre a situação e os problemas da cultura, tal como o PCP os vê.
No decurso das quatro décadas de regime democrático mudou muito profundamente a face cultural do País.
Mudaram as condições de acesso e fruição, mudaram expectativas e reivindicações em relação à cultura, mudaram consumos e práticas culturais, em processos que envolvem significativas alterações nos níveis de escolarização e profundas mudanças sócio-culturais, nomeadamente as que decorrem de um acelerado processo de urbanização e suburbanização das populações, acompanhado tanto pelo acelerado declínio e desertificação humana do mundo rural como por processos de desindustrialização e de fragmentação do sector secundário.
Estas profundas mudanças têm uma muito importante expressão quantitativa: nomeadamente na construção de equipamentos, no crescimento de públicos, em múltiplas iniciativas de diferente dimensão, continuidade e alcance. E, sobretudo, na intervenção, iniciativa e realização dos próprios criadores, investigadores e cientistas; no aumento do seu número e nos seus elevados níveis de qualificação.
Nós valorizamos justamente o que se avançou. Mas afirmamos que poderia e deveria ter-se avançado muito mais, se tem sido prosseguido um verdadeiro rumo de democratização cultural, se tem sido atribuída às áreas da Cultura a prioridade que exigem, como parte integrante da resposta às necessidades de desenvolvimento e de progresso do nosso País e se não tivesse sido brutalmente cerceado o impulso revolucionário de Abril e se, nestes mais recentes anos, a cultura não tivesse sido assustadoramente subalternizada.
Só nos últimos 5 anos, o apoio às artes perdeu 75% do seu orçamento no plano da Administração Central. Sintomaticamente, foi eliminado o Ministério da Cultura. Acelerou-se o desmantelamento e aniquilação das estruturas públicas de apoio à actividade cultural. O Orçamento de Estado de 2015 reservou, para o conjunto da política cultural, o elucidativo valor de 0,16%!
A sangria dos valores do País normaliza-se e incentiva-se. O património histórico e os museus nacionais alienam-se em figuras de municipalização ou empresarialização, com vista à entrega a privados e o tecido cultural rarefaz-se, como um conservatório nacional em ruínas.
Uma política que tem como principal objectivo substituir qualquer perspectiva de democratização cultural, comprometida com as aspirações de transformação, emancipação e liberdade do povo, pela mercantilização da cultura e pela da hegemonia cultural das classes dominantes, e das indústrias culturais por elas promovidas.
O compromisso do PCP é outro. Para o PCP a Cultura representa um potencial e um valor insubstituíveis de desenvolvimento, de libertação e emancipação, individual, social e afirmação nacional.
A política de Cultura que o PCP defende decorre dessa concepção. Defende um papel do Estado e uma responsabilidade pública determinantes nessa área, entendidos como factor de garantia da liberdade de criação artística, pressuposto da liberdade de fruição.
Uma política que no plano do património o salvaguarde e valorize, fazendo com que os portugueses contactem com a sua história e tradições, com a sua arquitectura e que dinamize o turismo, não por ser o património diminuído ao estatuto de parque de diversões, mas por estar tão ligado ao seu povo, que a sua vivacidade e genuinidade constituem um elemento que atrai portugueses e estrangeiros, aproximando culturas e povos.
Contra um entendimento da Cultura enquanto privilégio de elites e ornamento do poder. Pela democratização da Cultura e pelo apoio aos criadores, os trabalhadores da Cultura, temos vindo a apresentar propostas.
O fio que as liga é o do Serviço Público, e é nessa perspectiva que se enquadram as nossas propostas à cabeça das quais está a planificação de uma estratégia nacional para o desenvolvimento artístico e cultural que incremente o investimento público em Cultura de 1% do Orçamento do Estado no imediato, e com a perspectiva de se atingir 1% do PIB no fim da actual legislatura.
É verdade que levará muito tempo a reconstruir o que tem vindo a destruir-se. Mas não deixamos de sublinhar que um dos aspectos mais notáveis do grande movimento que se tem levantado contra a política que tem vindo a ser imposta nos últimos anos ao País é a crescente presença e participação do mundo da cultura. E isso dá-nos muita confiança de que vai ser possível mudar.
Participação diária, concreta, na acção especificamente cultural, de resistência, de quem não desiste de criar, e pôr em movimento a construção colectiva de um direito para todos.
Participação que os trabalhadores da cultura, os intelectuais, os mais diversos agentes produtores e promotores de cultura que a tomam como um direito de um povo, assumem com cada vez maior clareza que a plena realização das suas capacidades não pode realizar-se no “estado das coisas actual” e exigem uma ruptura radical com tal estado de coisas.
Porque sabemos que os avanços na democratização da cultura produzirão efeitos no necessário desenvolvimento social.
Porque sabemos que a cultura é um dos elementos fundamentais da democracia e um factor de democratização da sociedade que alarga a intervenção do povo nos vários planos da vida.
Porque garante a liberdade de usar a imaginação, o sonho, a criatividade para encontrar saídas, recusar inevitabilidades, negar o fim da história, desejar o futuro, construir outro presente.
Mais uma vez saudamos esta importante iniciativa de valorização do nosso património cultural e todo o esforço que se vem fazendo para promover e desenvolver a nossa cultura.
Os nossos agradecimentos pela vossa atenção.