Homenagem a Guilherme de Almeida - Intervenção de Domingos Abrantes
"Senhor Presidente da Câmara Municipal do Fundão
Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Janeiro de Cima
Familiares de Guilherme de Almeida
Caras Amigas e Amigos
Todos os seres humanos têm em comum o não terem podido decidir da natureza do berço, nem o tempo do nascimento. Mas a posição face aos problemas do seu tempo é uma decisão de cada pessoa, uma decisão que marca o sentido da vida de cada um. É sobre a decisão que marcou a vida de Guilherme de Almeida que falarei.
Agradeço muito vivamente a possibilidade que me é dada de poder participar na justa, necessária e oportuna homenagem a Guilherme de Almeida, cidadão democrata, antifascista, comunista, lutador pela liberdade e o progresso social, e que tive o prazer de conhecer pessoalmente ainda no tempo da ditadura, um tempo de vidas e horizontes bastante negros, mas em que nos animava a convicção de que Portugal não estava condenado a viver privado das mais elementares liberdades e que os que se tinham auto-proclamados vencedores eternos seriam derrotados.
Dos contactos com Guilherme de Almeida guardo a grata imagem de um homem de firmes convicções, de inabalável confiança na justeza das causas que abraçou desde muito novo, de um espírito solidário não só por dever, mas como um modo de ser e de estar no mundo. Guardo igualmente a lembrança da solicitude para com os jovens do MUDJuvenil que acolhia, que o procuravam, vendo-os como a garantia da continuação da luta por causas que abraçara.
A homenagem que hoje se presta a Guilherme de Almeida na terra que o viu nascer, e que prestigiou por aquilo que foi e fez na vida, não é, ou não deve ser, tão só um acto de justiça, mas igualmente uma contribuição para a recuperação da memória para não deixar esquecer que a liberdade conquistada em Abril de 1974 e a resistência dos que disseram não ao fascismo, a uma forma de organização social iníqua, predadora, são inseparáveis, além de que os resistentes eram seres concretos, tinham rosto, tinham voz, tinham nomes que devem ser conhecidos. Lembrá-los é um acto de pedagogia democrática, é uma forma de perpetuar e honrar a memória de todos quantos deram o melhor das suas vidas, e não poucos a própria vida, sem nada pedir em troca para que os povo português tivesse a liberdade como modo de viver.
Felicito por isso a Câmara Municipal do Fundão e todos os que tornaram possível esta homenagem, porque ela constitui um contributo para a defesa da liberdade.
O livro hoje apresentado, «Manuel Guilherme de Almeida, pequena biografa de um natural de Janeiro de Cima», ainda que classificado de «pequena biografia» dá-nos a conhecer o essencial de um longo percurso de uma vida de 94 anos, no plano humano, profissional e naturalmente como antifascista e comunista. A pequena biografia assim chamada fala por si. Além disso, ela dá-nos a expressão cronológica de um percurso de vida de um homem que foi, e passo a citar: «alfaiate, inventor, professor de corte, preso político deportado, mestre, comendador, pai, avô e bisavô». Um conjunto de situações que definem um percurso de vida marcado decisivamente pela fidelidade à natureza do berço de nascença, aos ideais que abraçou e pelos quais pagou um elevado preço humano, pessoal e familiar. Pelo que foi na vida, pela sua entrega à causa dos trabalhadores, da liberdade e do progresso social, Guilherme de Almeida continuará como exemplo e como fonte de estímulo, ao lado dos que continuam a empunhar as bandeiras das causas pelas quais lutou e se sacrificou.
No decurso da sua vida, Guilherme de Almeida conheceu quatro regimes políticos: a monarquia, a República, a ditadura fascista e o regime democrático saído da Revolução de Abril. Em todos eles esteve do lado certo. Do lado dos explorados, dos privados de direitos e da liberdade, dos que precisavam de uma mão solidária nos momentos difíceis.
Guilherme de Almeida nasceu no seio de uma família pobre. Não será difícil imaginar o significado disto tendo em conta a origem social dos pais e os padrões de vida à época que hoje nos pareceriam um pesadelo. Ao longo da sua vida nunca esqueceu a sua origem, mesmo quando pelo seu trabalho se elevou na escala social. Cedo conheceu a exploração. Cedo começou a lutar por uma vida e um mundo melhor, o que virá a ser a causa das causas que abraça e que vão dar sentido à sua vida.
Republicano convicto, conheceu o sabor amargo, como muitos trabalhadores, ao perceber que a proclamada República da igualdade, liberdade e fraternidade não se aplicava aos de baixo. A República foi bastante madrasta para com o mundo do trabalho – quer em política social, quer em direitos –, ao fim e ao cabo madrasta para com a força decisiva para a implantação da República e a sua defesa das arremetidas monárquicas, com tudo o que isso teve de trágico para os destinos da República e do povo português.
Guilherme de Almeida foi preso por quatro vezes durante a República, fazendo parte dos milhares de vítimas – qualquer coisa como três mil pessoas – que acusadas de «avançadas», de bolcheviques», de «agitadores, de «inimigos da ordem social», ou acusados de «propaganda dissolvente» foram presos, torturados e assassinados, durante a vigência da República democrática.
Aos 15 anos fez-se sindicalista, tornando-se um activista empenhado na defesa das organizações sindicais e dos interesses da sua classe e dos trabalhadores em geral. Encabeça várias lutas dos trabalhadores. Em 1920, aos 22 anos, é preso pela primeira vez e ganha o honroso qualificativo policial de «agitador das classes operárias».
Guilherme de Almeida fez parte dos que saudaram e apoiaram a Revolução Socialista de Outubro de 1917 na longínqua Rússia, um terramoto que abalou profundamente o mundo, e naturalmente Portugal, no plano político, social e ideológico. Os poderes instituídos e a comunicação social que os servia, pintaram a situação na Rússia resultante da Revolução Bolchevique com cores terríficas. Autêntico terrorismo psicológico. Qualquer coisa como o maléfico ter tomado a Rússia e ameaçado todo o planeta. Mas para os trabalhadores era o sonho milenar de uma vida sem exploração que se apresentava finalmente como uma possibilidade real. Renascia a esperança numa nova vida e com ela crescia a combatividade e a determinação e a esperança de quem não fica sentado à espera que a nova vida lhe caia do céu. Do desprezo pela vida política, os trabalhadores passaram a participar na vida política não como espectadores mas para defender direitos próprios, para reclamar o direito a decidir dos seus próprios destinos, a construir uma sociedade mais justa.
Guilherme de Almeida vai estar no núcleo de trabalhadores e sindicalistas que sob o impulso da Revolução de Outubro fundou o Partido Comunista Português a 6 de Março de 1921, já lá vão mais de 100 anos, e deste modo vinculou a sua vida a um dos acontecimentos mais marcantes do século XX português. Esta é naturalmente a visão de um comunista, mas se se analisar a história objectivamente, despida de ideias preconcebidas, não será difícil concluir que se trata de um facto histórico. A vida política e social do nosso país a partir de 1921 passou a ser marcada por esta nova realidade. No quadro partidário português surgiu uma força política que se reivindicou de representação política de uma classe particular – os trabalhadores – que proclamou como objectivo supremo o fim da sociedade assente na exploração do homem pelo homem. O custo de perseguições sem fim por esta proclamação é conhecido por todos.
A luta social, a natureza das organizações de classe e o conteúdo das reivindicações sofreram profundas alterações qualitativas.
É um facto histórico que a fundação do PCP marca no processo de desenvolvimento da vida nacional um antes e um depois de 6 de Março de 1921.
Todos os fundadores do PCP, para além de trabalhadores e sindicalistas, caracterizavam-se por um longo historial de enorme dedicação à causa dos trabalhadores e das suas lutas, pelo espírito de sacrifício, pelo entusiasmo e confiança na luta. Faziam parte de uma geração que fez escola no movimento operário, e da qual Guilherme de Almeida é um exemplo, que consideravam o brio profissional e a elevação cultural, a aquisição de conhecimentos em várias áreas do saber como a condição para estarem à altura do confronto com as classes dominantes na luta pela direcção da organização social. Sendo embora autodidactas, vários deles surpreendiam pela vastidão dos conhecimentos, pelo talento literário e jornalístico. Muitos deles, se não mesmo todos, viriam a ser presos, alguns ainda antes da fundação do PCP.
E no entanto temos desde há muito salientado que pelo nível de conhecimentos que os fundadores do PCP tinham sobre a complexidade dos processos de emancipação social, sobre a teoria das revoluções, dificilmente podiam avaliar a importância e o significado histórico da odisseia em que se lançaram, mas ficarão na história pelo mérito de terem criado o partido político dos trabalhadores e com isso marcar decisivamente a evolução da vida nacional. Sem aquela decisão é fácil de ver que a resistência ao fascismo não teria sido o que foi, a vida do mundo do trabalho teria sido bem mais difícil. A eles cabe o mérito de terem criado o único partido que o fascismo não conseguiu liquidar.
Guilherme de Almeida, liquidada a República, instaurado o fascismo, suprimidas as liberdades, fez parte dos que não se intimidaram, não desertaram nem hibernaram à espera de melhores dias, e ocuparam um lugar na luta contra o fascismo e pela liberdade, quer na luta clandestina, quer nos grandes movimentos da oposição democrática. Uma opção pela qual pagou um muito pesado custo no plano humano, pessoal e familiar. Lembramos que foi preso cinco vezes no período fascista, o que somado às quatro no período da República significa que foi preso nove vezes, tendo passado cerca de 8 anos nas cadeias. Foi deportado para Timor. Esteve encarcerado em muitas cadeias, entre as quais se conta Angra do Heroísmo e Peniche, símbolos sinistros do sistema prisional fascista.
Guilherme de Almeida, bem como Alice de Almeida, sua companheira de toda uma vida e de muitas lutas, deu um contributo inestimável no campo da solidariedade aos presos e perseguidos políticos, quer como membro do Socorro Vermelho Internacional, quer na acção solidária em geral.
A solidariedade era uma forma de acção antifascista e por isso mesmo considerada crime e sujeita à repressão.
Sem a solidariedade a resistência teria sido muito mais difícil e os problemas humanos muito mais dolorosos. A esmagadora maioria dos presos e perseguidos políticos eram trabalhadores, gente de poucos recursos que ao serem presos recaíam sobre as famílias verdadeiras tragédias, porque na estrutura social à época a única fonte de rendimento da maioria dos lares era representada pelo salário do chamado chefe de família. Não era menos difícil a situação dos presos que saíam da prisão sem trabalho, sem casa e sem roupa. A solidariedade para com os presos políticos e suas famílias é uma verdadeira epopeia na resistência à ditadura. E se a memória não me engana creio mesmo que foi preso por isso com toda a família, com excepção do filho mais novo.
O livro termina com a afirmação de que Manuel Guilherme de Almeida era um homem sempre pronto a começar de novo. A sua vida foi de facto um permanente começar de novo, sem mudar de rumo. Uma vida só suportada por assentar na firmeza das convicções e na confiança na justeza das causas que abraçara.
Guilherme de Almeida fez parte dos que tiveram a felicidade de assistir ao derrube da ditadura, à conquista da liberdade, bandeira da esperança de várias gerações. Uma conquista de que ele foi também um obreiro e que, por isso mesmo, deve ser considerado como um dos cravos de Abril. Não pode deixar de ser motivo de reflexão o facto de a homenagem ao antifascista Guilherme de Almeida ocorra quando vivemos momentos preocupantes quanto à evolução do mundo e cujo desfecho se afigura incerto. É preciso estar-se distraído para não ver que um pouco por todo o lado saíram dos armários ameaçadoras forças sinistras, cuja força e influência em vários países não podem ser subestimadas.
O fascismo não é nem nunca foi um fenómeno conjuntural. O fascismo é determinado por causas económicas e sociais que não encontram solução no quadro do normal funcionamento dos regimes democráticos. Quando existem massas gigantescas sem horizontes de vida cria-se o caldo de cultura facilitador de soluções autoritárias.
A defesa da liberdade exige que não se esqueça a experiência do passado. Perder a liberdade é rápido. Recuperá-la é muito difícil. A defesa da liberdade exige que os mais velhos não esqueçam e que os mais novos saibam que o fascismo existiu com tudo o que isso significou e que a bandeira da liberdade conquistada está cheia de marcas de imensas vidas sacrificadas, sacrifícios que não podem ter sido em vão. A defesa da liberdade é a melhor homenagem que se pode prestar a Guilherme de Almeida e todos que tornaram possível a mais bela conquista de Abril: a possibilidade de se ter a liberdade como modo de viver."